Antes de discutir o “futuro do trabalho”, precisamos encarar o presente: uma era em que o esforço virou vilão, o atalho virou virtude e o sentido do trabalho foi enterrado vivo.
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24 min
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14 out 2025
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Atualizado: 14 out 2025
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Em tempos de inteligência artificial, muito se fala sobre o futuro do trabalho. Para onde quer que se olhe, a pauta é sempre a mesma: quais serão as profissões do amanhã? Quais competências teremos de dominar? Existirá trabalho para todos ou seremos substituídos por algoritmos e nos tornaremos inúteis?
Questões válidas, sem dúvida. Afinal, nós, humanos, precisamos de ordem para sobreviver ao caos. Desde os tempos das cavernas, a segurança de um abrigo foi a base de tudo. A discussão sobre o futuro do trabalho cumpre exatamente essa função: nos oferecer a sensação de que, mesmo em meio à incerteza, há um lugar sólido para onde podemos nos proteger.
O problema é que discussões como essas nos distraem. Como em todo grande equívoco histórico, preferimos criar projeções rasas sobre o que virá do que encarar a analise profunda desconfortável do que já está aqui bem na nossa frente. Falamos do amanhã como se fosse possível saltar direto para ele, sem reconhecer o peso do hoje. É como construir mapas sem olhar o terreno: o olho está na bússola, mas o chão já está cedendo sob os pés.
Portanto, antes de qualquer chute sobre o que será o futuro do trabalho, é preciso fazer a pergunta mais incômoda e mais urgente: como é o presente do trabalho? De onde, afinal, estamos partindo para imaginar esse amanhã?
Nessa investigação honesta, uma verdade brutal se impõe: o trabalho já morreu. Nós matamos o trabalho mesmo antes dele morrer de verdade.
Fomos nós que, lentamente, retiramos do trabalho a sua alma e sua dignidade. Transformamos ele em vilão, em tóxico, em assediador. Enterramos o sentido e o valor do trabalho com ele ainda vivo. Continuamos comparecendo aos escritórios, mas muitas vezes sem acreditar muito no que aquilo representa. Mortos de alma , vivos de corpo. Mortos-vivos.
Não há duvidas que a inteligência artificial vai desestruturar o que entendemos por trabalho humano. Ela já ameaça profissões e nos força a repensar a fronteira entre esforço humano e capacidade da máquina. Mas mesmo antes dessa revolução tecnológica realmente começar, nos como humanidade, já preparamos o terreno para o colapso do trabalho.
Este é o tema deste artigo.
A humanidade zarpa para a viagem mais incerta de sua história desde um porto muito inseguro.
Perceba: o significado do “trabalho" não é um conceito fixo. Ao longo de mais de três mil anos de história documentada da humanidade, seu significado foi sendo moldado pelas circunstâncias políticas, religiosas, econômicas e culturais.
Primeiro, o trabalho era visto como punição e obrigação, uma atividade servil destinada aos escravos e às classes inferiores. Depois, com o avanço das religiões monoteístas, o trabalho foi glorificado: passou a ser visto como um chamado divino, uma vocação, um caminho de disciplina moral e de dignificação do homem. Mais tarde, no século XIX, tornou-se campo de batalha entre classes, o lugar onde se travava a luta entre quem detinha os meios de produção e quem vendia sua força de trabalho.
Por fim, o significado do trabalho chegou ao que conhecíamos até poucas décadas atrás: o trabalho como um “espaço de conquista". Homens e mulheres livres se lançavam em busca do seu sucesso pessoal, acreditando que resiliência e superação valiam a pena. A jornada era lenta e gradual, mas reservava prêmios aos mais talentosos e persistentes.
Vivíamos a “Economia do Esforço" onde “Deus ajuda a quem cedo madruga". O tempo investido no trabalho não seria desperdiçado, mas sim recompensado ao final da jornada. Nesse campo simbólico, nossos “heróis” eram aqueles que venciam os obstáculos com lealdade e obstinação. Glorificados como modelo a ser seguidos, aplaudíamos aqueles que acumulavam “anos de casa”. A narrativa heróica do “começou como Office boy e foi até ser CEO”.
Mas você se distraiu ( literalmente) e o mundo mudou… para o extremo oposto:
a Economia do Esforço tornou-se a Economia do Atalho.
Uma sociedade digitalizada e distraída que implodiu silenciosamente a lógica do esforço. Reprogramou nosso imaginário coletivo, deslocando o valor da paciência e da disciplina para uma obsessão ansiosa pela velocidade e pelo imediatismo:
Primeiro, criaram a ilusão de que tudo pode ser imediato. O mundo digital nos treinou a esperar que desejos sejam atendidos no mesmo ritmo em que surgem: um clique e a música começa, um toque e a comida chega, um deslizar de dedo e alguém aparece para conversar. O tempo deixou de ser travessia e virou obstáculo. A paciência, que antes era o músculo essencial da conquista, foi atrofiada pela lógica do instante. O caminho legítimo parece ingênuo diante da promessa constante de que sempre existe um atalho.
Segundo, deslocaram a régua de admiração. Os heróis de ontem eram os que atravessavam décadas de dedicação. Os de hoje são os que viralizam um vídeo, lançam uma startup em meses ou acumulam seguidores sem sair de casa. A disciplina de longo prazo passou a soar obsoleta diante da glória instantânea. Admiramos mais quem parece ter hackeado o sistema do que quem sustentou uma trajetória longa e sólida. A narrativa da travessia foi substituída pelo fascínio de quem encontrou o atalho.
Terceiro, instauraram uma economia da comparação infinita. As redes não apenas expõem histórias de sucesso, mas as transformam em espetáculo diário. A cada deslizar de tela, somos confrontados com vidas editadas que parecem sempre mais rápidas, eficientes e brilhantes que a nossa. O esforço próprio, diante disso, soa pequeno e ingênuo, como se estivéssemos caminhando devagar enquanto todos os outros já descobriram um atalho.
Enterramos o esforço como virtude e passamos a viver como se atalhos fossem um destino inexorável da civilização. Atalhos são o progresso. E nessa auto-consentida ascensão da “Economia do Atalho" uma silenciosa transformação aconteceu:
O trabalho deixou de ser um “espaço de conquista” para ser “espaço de sofrimento”. A experiência cotidiana de trabalhar passou a ser descrita por palavras como prisão, opressão, assédio, tédio, lentidão e injustiça. Uma atividade que antes produzia honra e orgulho, hoje produz ressentimento e cansaço. O trabalho virou vilão.
Não é por acaso que memes como “fuja da CLT” se popularizaram: elas traduzem o desencanto coletivo com uma rotina que já não alimenta ninguém. O sentido do trabalho evaporou por entre os poros de cérebros liquefeitos digitalmente. O trabalho ficou completamente fora de moda.
Nisso, um grande desencaixe das culturas corporativas aconteceu. Expectativas infinitas, lamentações intermináveis. Culpabilização e vitimização. Colaboradores que não colaboram, líderes que não lideram. Ninguém mais tem "sangue no olho”, ninguém mais “morde a mesa". Todo mundo desconfortável caminhando por entre os escombros daquilo que uma vez fez sentido.
A felicidade sumiu das organizações e planos desesperados de atração, retenção, engajamento, motivação foram postos em prática para tentar estancar um vazamento de sentido que escorre pelos dedos. Algo que deveria ser nossa fonte de realização, se transformou em peso, cansaço e ressentimento.
O trabalho ainda permanece de pé, não foi disruptado por máquinas, mas está respirando por aparelhos: existe formalmente, mas sem a vitalidade de antes. Nesse processo, não somos apenas espectadores de um funeral antecipado. Somos os sádicos coveiros, cavando a sepultura e enterrando vivo aquele que antes nos fazia feliz.
Mas então a pergunta que me parece obvia é : por que discutir sobre futuro do trabalho se ninguém se importa mais tanto com ele?
É óbvio que, no nível mais básico, a discussão sobre o futuro do trabalho sempre estará associada à necessidade de sobrevivência. Essa é a preocupação mais frequente: precisaremos de dinheiro para pagar os boletos. Uma angústia legítima.
Neste ponto, se serve de consolo, a história mostra que toda vez que uma revolução tecnológica ameaçou empregos, a humanidade encontrou formas de se adaptar. Novas funções surgiram, antigas desapareceram, e o fluxo continuou. Mesmo que de maneira dolorosa, acabamos sempre nos reacomodando.
Mas o grande ponto sobre o futuro do trabalho não se restringe a empregos e salários. Isso é focar nos fins ignorando o valor dos meios. O trabalho não é só algo que fazemos para ganhar dinheiro, mas algo que nos define como espécie.
Como humanos, fomos moldados pela capacidade única de transformar o ambiente ao nosso redor. Foi trabalhando (muito) que domesticamos a natureza, erguemos cidades, criamos linguagens e construímos culturas inteiras. O trabalho é o gesto que nos distingue dos outros animais: não apenas sobrevivemos, mas atribuímos significado à sobrevivência ao intervir no mundo. Mais do que uma atividade econômica, o trabalho é uma declaração de humanidade.
Aqui então reside o verdadeiro plot twist desse momento: a chamada “Economia do Atalho” vilanizou e matou o sentido do trabalho justamente quando mais precisamos do trabalho como valor diferenciador para justificar a própria relevância dos humanos.
Com isso, a “morte do sentido do trabalho” nos enfraqueceu num momento crucial da humanidade: Num mundo de máquinas superinteligentes com fome infinita de trabalho, precisamos que humanos que não deixem trabalho no prato. Que valorizem o esforço e que acreditem novamente que o “trabalho enobrece o homem”.
Precisamos retomar o gosto pelo trabalho e com isso retomar nossa humanidade perdida. Sem o valor do trabalho nos tornaremos apenas seres sem alma, sem brio, sem resiliência, sem honra, sem confiança, sem auto-estima, sem orgulho. Apenas mais uma especie de seres farejadores de atalhos que buscam simplificar tudo a sua volta. E o pior, reféns de máquinas para fazer qualquer coisa.
Nosso contexto ensina que os meios importam além dos fins porque somente através da valorização do trabalho temos:
1. Pertencimento e conexão
Trabalhar é se reconhecer como parte de algo maior. É sentir que sua ação tem um lugar dentro de uma trama coletiva. Esse pertencimento cria laços de confiança, identidade e até de afeto. Sem ele, caímos em isolamento e alienação.
2. Continuidade e legado
O trabalho nos projeta no tempo. Ele nos permite transformar esforço presente em continuidade futura, construir algo que permanece mesmo quando já não estamos lá. Esse senso de legado é profundamente humano: é saber que nossas mãos, nossa inteligência e nossa disciplina deixam marcas. O trabalho é ponte entre passado e futuro. Sem ele, perdemos a noção de continuidade e nos reduzimos ao instante.
3. Orgulho e estima
Ao longo da história, o trabalho foi fonte de honra. Não apenas porque nos dá meios, mas porque nos dá estima. Sentimos orgulho ao olhar para algo que construímos, de vencer desafios, de superar obstáculos. Esse orgulho alimenta a autoestima, dá consistência ao nosso eu. É através dele que reconhecemos o valor de nosso esforço. Sem ele, sobra insegurança e vitimismo .
O trabalho é a nossa fonte primária de humanidade. Precisamos resgatar urgentemente o seu valor em nossas vidas e nossas empresas. Esforço, superação, contribuição coletiva, orgulho, pertencimento precisam voltar a moda.
Essa é a discussão mais urgente no presente. Para garantir a chave de algum futuro.
Como fazemos isso?
É óbvio que dar valor ao trabalho é, antes de tudo, uma responsabilidade individual. Cada um de nós precisa escolher a postura com que encara suas tarefas. O mesmo esforço pode ser visto como peso ou como oportunidade, como obrigação ou como construção de sentido. O trabalho só se torna humano quando o sujeito decide habitá-lo com presença.
Mas há também uma responsabilidade organizacional. A empresa precisa criar uma dinâmica de trabalho que favoreça essa construção de sentido. Tratar humanos como máquinas, medindo apenas resultados, sufocando pela rotina ou reduzindo pessoas a engrenagens, não ajuda. Se queremos que o trabalho volte a ser espaço de humanidade, precisamos desenhá-lo como tal.
O resgate do trabalho dentro do próprio trabalho passa por três dimensões fundamentais: desafio, descoberta e diálogo.
Trabalho que vale a pena é trabalho que desafia. O desafio não é sobre sobrecarga, mas sobre criar contextos onde audácia e coragem se tornem parte da rotina. Quando ciclos de trabalho são mais curtos, a energia se renova, a pressão se transforma em foco e a superação deixa de ser promessa distante para se tornar conquista frequente. O desafio funciona como academia da psique: quanto mais exercitado, mais forte se torna o músculo da resiliência.
Um bom desafio exige coragem para arriscar, audácia para propor o improvável e disciplina para sustentar o que parece impossível. Ele resgata no trabalho a sensação de travessia, de estar avançando mesmo em passos menores. Sem desafio, o trabalho se reduz à anestesia da repetição. Com desafio, se transforma em campo de evolução, onde cada ciclo fechado gera não só resultado, mas também orgulho.
Trabalho com alma é trabalho que abre espaço para descoberta. Descobrir não é apenas inovar, mas adotar uma gestão por perguntas: questionar o óbvio, explorar hipóteses, manter viva a curiosidade. A descoberta acontece quando a autonomia é real, quando a experimentação não é retórica, mas prática. Ela é o antídoto contra o tédio, porque transforma a rotina em laboratório.
Mais do que grandes inovações, são as pequenas descobertas que mantêm o trabalho vivo: um processo repensado, uma ferramenta melhor usada, um caminho alternativo para resolver um problema antigo. A experimentação contínua traz frescor e mantém o cérebro em estado de criação. Sem descoberta, o trabalho vira prisão. Com descoberta, se torna escola, um espaço em que a cada dia algo novo pode emergir.
Se o desafio fortalece e a descoberta renova, é o diálogo que conecta. O diálogo real exige abertura para ouvir, reconhecimento pelo pequeno, humildade para mudar de opinião e escuta ativa como prática diária. Ele cria o espaço simbólico onde o trabalho deixa de ser monólogo e se transforma em construção coletiva. Sem diálogo, o trabalho vira ruído. Com diálogo, vira cultura.
Diálogo não é apenas reunião agendada, mas a soma de microinterações que validam a humanidade do outro. É o líder que reconhece a contribuição discreta, é o colega que escuta sem interromper, é o time que aprende a discordar sem se destruir. O diálogo dá pertencimento porque nos lembra que não estamos sozinhos. Ele é o cimento invisível que mantém de pé as relações de confiança.
Essas três dimensões, desafio, descoberta e diálogo, formam a tríade do trabalho vivo. Quando presentes, o trabalho deixa de ser apenas troca econômica e volta a ser espaço de humanidade. É nelas que reencontramos aquilo que nenhuma máquina será capaz de oferecer: não apenas fazer, mas significar.
Esse é o desafio que temos pela frente: reinjetar sentido no trabalho. Reprogramar o esforço do dia a dia para que não seja apenas mais um atalho vazio e imediato, mas um caminho de significado. É escolher audácia em vez de apatia, perguntas em vez de respostas prontas, diálogo em vez de silêncio.
O futuro do trabalho não será definido pelas máquinas, mas pela nossa capacidade de devolver ao trabalho aquilo que sempre o fez humano: o poder de nos transformar enquanto transformamos o mundo.
A pergunta decisiva não é “como será o futuro do trabalho?”, mas “como o trabalho voltará a significar algo para nós?”. Sem esse resgate, qualquer discussão sobre profissões ou competências é apenas superfície. O futuro não será construído pelo número de empregos preservados, mas pelo significado que esses empregos terão para aqueles que os desempenham.
As máquinas poderão processar mais, aprender mais, executar mais. Mas jamais poderão experimentar o que o trabalho significa em sua dimensão simbólica. Elas não conhecem pertencimento, não se preocupam com legado, não sentem orgulho e não enfrentam o desafio como travessia. Elas apenas fazem. Nós, ao contrário, precisamos atribuir sentido ao que fazemos para continuar existindo como humanos.
Se quisermos falar de futuro, precisamos antes resgatar o presente. O trabalho só terá futuro se significar algo para nós. Se for apenas obrigação, será tomado pelas máquinas. Mas se for espaço de pertencimento, legado, estima e desafio, continuará sendo o que sempre foi em sua essência: uma das expressões mais poderosas da nossa humanidade.
O desafio, portanto, não é apenas tecnológico, é existencial. Não basta preparar-se para o futuro do trabalho, é preciso reumanizar o presente do trabalho. Reinjetar sentido no esforço cotidiano, recusar a lógica do atalho e redescobrir o valor da construção paciente. Só assim seremos capazes de atravessar a era das máquinas sem perder aquilo que nos define: a capacidade de transformar o mundo e, nesse mesmo gesto, nos transformar como espécie.
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Experiente Diretor de Marketing, Inovação e Estratégia com um histórico comprovado em vários indústrias. Hábil em Gestão de Marketing, Planejamento de Mercado, Planejamento Estratégico, Customer Marketing, Inovação e Transformação Digital.
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